Meu querido Amigo,
Há mais de uma semana que quase não durmo, pensando nessa "mais-que-coisa" que nos fita "como se dissesse: «Sou eu»", essa "mais-que-coisa" de cuja existência sempre suspeitei e cuja existência um dos seus poemas confirmou. O poema, As Coisas, foi o que escolhi citar nas primeiras páginas do meu livro homónimo porque, no fundo, confirmou também a possibilidade de existência desse livro. Todavia (e uso o advérbio porque sei que gosta dele; eu costumo usar o mais banal "contudo" e o mais curto "porém", mas hoje as palavras são para si e vou fingir que tenho a liberdade de lhe oferecer as suas próprias palavras). Dizia eu: todavia, perdi-a, a essa "mais-que-coisa", para sempre "entre prédios altos,/ sonhos de beleza, e em ruas intermináveis/ e no meio das multidões" (desculpe-me por estar sempre a citá-lo, mas desde ontem que os seus versos são tudo aquilo de que me lembro: "silêncio, escuridão e nada mais", "a meu favor tenho o teu olhar", "voltamos, um a um, da tua morte"...). E perdi-a para sempre pelo simples facto de a doença e a morte (quer a anunciada, quer a confirmada) dos que amamos nos privar do nosso próprio rosto, do nosso próprio nome, da nossa própria identidade. Serei certamente ainda aquela que aprendeu consigo que a amizade é a forma mais desprendida de amor; serei certamente ainda aquela que aprendeu consigo que "Primeiro sabem-se as respostas, as perguntas vêm depois", que os poemas são escritos nos próprios poemas, que não basta escrever poemas, é preciso estar disposto a defendê-los, como sustentava Yevtushenko. Serei certamente ainda essa pessoa que passeou pelo Porto consigo, que, durante várias madrugadas, esqueceu o sono para poder ouvi-lo, que chorou consigo a morte dos gatos. Serei certamente essa Inês, mas a "mais-que-coisa" primordial tem vindo a quebrar-se e são já raros os momentos em que me fita o rosto podendo afirmar, diante dele, "Sou eu". Porém (cá está...), o seu poema As Coisas ensina ainda a quem souber lê-lo que essa "mais-que-coisa", precisamente por ser primordial, por ser "antes da coisa", equivale a tudo o que perdemos desde que começamos a existir. Esta sua capacidade de em quatro versos recentes sintetizar uma obra extensa, hoje com quase quatro décadas, foi, desde o momento em que comecei a lê-lo com atenção, tinha então a sua Poesia Reunida acabado de sair, uma das "coisas" - e, há que dizê-lo, "mais-que-coisas" - que sempre me fascinou. Não apenas por revelar o seu modo de criar, de escrever poesia (poiesis...), a sua oficina de poeta, como também por revelar a sua honestidade e generosidade ao criar (e, como tantas vezes discutimos, em nada isto se confunde com amputação do fingimento ou, para usar um termo que talvez faça hoje mais sentido, da imaginação). Em suma, por revelar não apenas o criador, como também o homem que o Manuel foi, que o Manuel continuará a ser.
Não sei se alguma vez lhe cheguei a dizer o quanto me faz lembrar o meu Avô Zeca. Se não o fiz, ouvir-me-á agora, pois esse, sim, é o maior elogio que lhe posso fazer. E é também a razão que torna impossível aquilo que me têm dito desde os meus 12 anos: tens que aceitar. Eu não aceito: não aceito a morte e nunca poderei compreender uma doença que, em meses, me roubou algumas das melhores pessoas com quem me cruzei na vida, as pessoas que mais me ensinaram sobre o amor, a amizade, a beleza, a partilha. Como compreender uma doença que faz do corpo daqueles que amamos uma casa? Como compreender uma doença que se atreve a habitar os pulmões de um avô, o rosto de outro, os ossos de um amigo?
Quero acreditar que a morte, tal como a poesia, é essa passagem para o que não se vê (julgo que estou a citá-lo de novo). "Onde, porém?" (agora, sim, cito-o). Onde poderei um dia reencontrá-lo? "Em que lugares reais?" Na sua poesia, sem dúvida. Só que eu preciso disso: de um lugar real onde possa reencontrá-lo. Porque a minha dor não adormecerá nunca ao meu colo "como um animal de companhia".
Provavelmente é esse o motivo que explica a razão da minha irritação ao ver desfilarem nos jornais declarações de gente que nunca o leu. Lamentam a sua morte, essas pessoas que nunca o leram nem nunca o conheceram apenas porque "tem que ser", porque "fica bem", porque "é justo", porque "foi Prémio Camões". Agora, como o Manuel António bem sabia e bem me avisou ao sublinhar tantas vezes que, quando morremos, nos tornamos símbolos até que finalmente nos deixam cair no esquecimento, vão querer lembrá-lo, vão falar dos seus gatos e chamar-lhe gato, vão definir a sua poesia como sendo "do quotidiano" (e como se ficassem apenas à superfície dos seus versos), vão comentar como foi justo atribuírem-lhe o Camões e como foi no momento certo... Alguns talvez até recordem o seu casaquinho preto e o polícia que sabe os seus versos de cor. E alguns discutirão se é da Guarda ou do Porto como se um poeta não fosse de todos os lugares do mundo.
Eu continuarei à espera dos "lugares reais", para além dos versos. Como o Manuel sabe, tenho vida dentro de mim e, no entanto, sinto-me cada vez mais perto da morte, até pelo facto de a vida que está dentro de mim me fazer temer ainda mais a morte. Essa vida que me habita, deste Manuel que agora aguardo e que está dentro de mim como se eu fosse o país de pernas para o ar que ele pode habitar por estar ainda tão perto da infância, por ser ele uma espécie de infância absoluta, essa origem em que todas as palavras são possíveis; esse Manuel tentou avisar-me ontem, com um valente empurrão nas costelas que me deixou o interior do corpo a arder, que o dia 19 de Outubro seria cruel. Tal como têm sido os últimos 19 de Agosto para mim (e, sim, Agosto é que é o mais cruel dos meses, como eu disse ao Álvaro Magalhães quando soube do seu internamento) e os últimos 26 de Maio de mais de metade da minha vida. Foi mesmo uma espécie de fogo que senti por dentro quando o meu filho Manuel tentou ganhar espaço dentro da minha barriga, ele que terá o seu nome e nascerá no seu mês. Doeu-me aqui, na zona do estômago, onde me disse que um dia pensou ser o coração, este centro do corpo onde o Manuel afirmava que doíam as ansiedades, as aflições, as euforias. E rematava: "O coração, desse ponto de vista, é na barriga." Eu tenho literalmente um coração na barriga. E ontem ele ardeu-me. Procuro nos seus poemas a palavra "fogo". Não aparece mais de meia dúzia de vezes, uma delas no poema "Passagem", que o Manuel António me dedicou. Termina assim: "Agora que os deuses partiram,/ e estamos, se possível, ainda mais sós,/ sem forma e vazios, inocentes de nós,/ como diremos ainda margens e como diremos rios?".
Pouco mais sei dizer, de facto, pouco mais consigo. Recordaram-me ontem que o Manuel disse um dia que era eu a pessoa que melhor compreendia a sua poesia. Eu apenas a compreendo porque a sua poesia me compreende a mim, porque a sua poesia me falou da infância enquanto origem (do ser e da linguagem) e da morte enquanto possibilidade de recomeço, do poeta enquanto "pequeno morto [que] morre eternamente/ em qualquer sítio de tudo isto./ É a sua morte que eu vivo eternamente/ quem quer que eu seja e ele seja./ As minhas palavras voltam eternamente a essa morte/ como, imóvel, ao coração de um fruto."
Amanhã, partirei com o pequeno Manuel para a cidade que o meu amigo usou durante anos como uma camisola interior. No seu Porto, despedir-me-ei de si, lembrando-me do que nos disse, a mim e ao Pedro, quando um dia conversámos sobre a morte dos outros: "Quando eu morrer, vocês vêm ao meu funeral, estejam onde estiverem. Se não vierem, eu depois apareço-vos, fantasma, em Lisboa." Pedi-lhe, então, que não falasse da sua morte - e mal a sabia eu tão perto, demasiado próxima.
Sei, todavia, que as minhas palavras, a minha memória, voltarão eternamente a si, meu Amigo. No penúltimo dia em que nos vimos, em Fevereiro, quando apresentou o meu livro no Porto, disse (generoso...) que eu tinha motivos para estar assustada por ter escrito As Coisas. "Porque, depois de se ter escrito um livro tão inteiro e, digamos assim, tão "definitivo", que outro livro é possível escrever?" Eu pergunto hoje, depois da sua morte, como poderei eu algum dia voltar a escrever um verso que seja. No último dia em que nos vimos, o Manuel deu-me um beijinho na barriga, não sabendo ainda que estava a dar um beijinho a um outro Manuel mais pequeno. Eu desejo hoje, depois da sua morte, que o meu filho possa ser um pouco como o Manuel António Pina.
Receba, onde estiver, os meus beijos, os meus abraços, as minhas saudades,
Inês."
Resumo dos últimos dois dias.
Inês Fonseca Santos
À Inês Fonseca Santos, cito Manuel António Pina: - “os pensamentos, as palavras, os desejos, os pesadelos, e as luzes e sombras são do que é feita a poeira da memória dos homens.”
ResponderEliminarCara Inês Fonseca Santos, tive conhecimento da sua carta pelo amigo jornalista e poeta Alberto Serra.
As suas palavras têm o condão, no sentido literal da palavra, de sublinhar a dimensão pessoal do Poeta Manuel António Pina.
A leitora, a amiga e a admiradora que foi a Inês Fonseca Santos, no entanto, permanecerá continuamente desperta. Preservará os livros (continuarão a ter leitores). Falará dos poemas (que se multiplicarão noutros), das crónicas (e assim sucessivamente), e lembrará a pessoa rara, que não passava incógnito pela cidade, que foi Manuel António Pina. Transmitirá ao vindouro pequeno Manuel o seu invulgar carisma e presença humana. Testemunhará que quem conheceu o sábio Manuel António Pina, que escreveu: - “a matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida - e a vida é provavelmente apenas memória -, se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa.” -, não ficou indiferente e alcançou algo de maravilhoso.
Porém, quem sabe, na noite, na solidão, no silêncio, eventualmente um policia sabedor dos seus poemas, sob o testemunho das estrelas, encontre os gatos vagueando como silhuetas, talvez de encontro ao Poeta, porque é dele a eternidade, e receiem acordá-lo do seu sono.
O querido amigo Poeta Manuel António Pina numa “carta a Mário Cesariny no dia da sua morte” termina assim a última quadra do poema: - “A gente vê-se um dia destes por Aí.”
Bem-haja Inês Fonseca Santos, pela sua carta e até sempre Fernando Vilares.